Ilustração Astronomy lesson, de Kacper Kiec
Este texto se propõe a trazer algumas reflexões sobre a prática do design dentro das organizações, de que forma uma mudança do uso do design contribui para a construção de novos sistemas e de como uma nova geração de designers vê a atuação da profissão.
O estudo e aplicação do design se dá de diferentes formas, e ele muda conforme o contexto e os agentes que fazem uso dele. Isso faz com que o seu significado seja amplamente interpretado, através de diferentes perspectivas. Na Nômade trabalhamos orientados pelo Design Estratégico e pela Psicologia Sistêmica, que juntos se complementam e olham para os processos e para as pessoas, de forma a desenvolver as organizações para inovarem com maior capacidade de impacto relevante.
Cada vez mais ouvimos falar sobre a construção de organizações horizontais. Estruturas organizacionais que usam como base a holocracia (sistema de gestão que descentraliza o poder de decisão e distribui para os colaboradores), processos colaborativos, modelos bottom up e outras tantas teorias que aspiram a construção coletiva, o empoderamento e a autonomia. Entendendo organizações, sejam elas privadas ou públicas, como sistemas complexos, uma vez que essas trabalham com a imprevisibilidade e com múltiplas variáveis, como, por exemplo, pessoas e suas diversidades, estruturas hierárquicas, fluxos de trabalho, entre outras variantes.
O design possui um papel fundamental na construção desses sistemas democráticos. Entendendo aqui que a democracia vai além do modelo político, democracia enquanto escolha do modo de viver, que assume, entende e pratica o cuidado mútuo, do compartilhamento de responsabilidades e deveres. O design possibilita, através do olhar sistêmico (que vê os indivíduos integrados ao contexto e as suas relações, que amplia a perspectiva olhando para o todo por meio das partes e das suas interações no ambiente), da aplicação de metodologias, de ferramentas centradas no ser humano e outras abordagens. Assim, possibilitando a construção de espaços de fala e escuta, onde os colaboradores possam exteriorizar necessidades e percepções que direcionam a materialização dos sistemas democráticos.
A construção desses espaços de escuta, apesar de terem extrema importância, são apenas um dos momentos do processo. É preciso orquestrar e sistematizar todas as informações exteriorizadas, com uma análise crítica e um olhar estratégico para a empresa, para então possibilitar a convergência e a proposição de novas soluções.
A nossa experiência na Nômade mostra que, para que isso aconteça dentro das organizações hoje, é preciso que as lideranças abram espaço para tangibilização desses sistemas. Ainda que as teorias de bottom up tragam a visão da mudança que ocorre “de baixo pra cima”, dentro das iniciativas privadas a mudança só ocorrerá se as pessoas que estão à frente da organização, as lideranças, estiverem favoráveis às novas estruturas, por questões do modelo hierárquico vigente.
Para que o design tenha esse papel ativo na construção de sistemas mais democráticos dentro das empresas, é preciso que os locais que se propõem a trabalhar com design e suas metodologias, possibilitem a atuação ativa destes profissionais na construção das estratégias e processos, e não somente na execução de projetos. De forma a desempenhar dentro das empresas que trabalham com design o que se coloca em prática nos projetos externos, alinhando discurso e prática, e tendo espaços reais de construção conjunta.
Esse movimento coletivo, de um olhar mais profundo sobre o papel das organizações na sociedade e que ressignifica o que é sucesso, até então medido somente pelo retorno financeiro, vem fortemente na voz de uma nova geração que demanda por negócios com sentido, que sejam verdadeiros no seu propósito, iniciativas transformadoras, que colocam em prática o discurso. Como já mencionamos em outros Gullivers, é uma geração que pensa cada vez mais no coletivo do que no individual, que exige das marcas que consome uma maior transparência. Essas demandas são as mesmas para as organizações que buscam trabalhar e aplicar seus conhecimentos, os lugares que vão dedicar seu trabalho, seu tempo e sua energia.
A procura por empresas com propósito está acontecendo em diversas áreas de atuação e dentro do contexto do design não seria diferente. Existe uma busca por lugares onde os designers possam desempenhar um olhar sistêmico, que através de metodologias e ferramentas, analisa e propõe novas formas das organizações atuarem. Existe a vontade (e a necessidade) da atuação da profissão que vai além do uso do design como tradicionalmente é visto, usado de forma superficial em situações pontuais, como suporte à outras áreas para gerar convencimento, que somente comunica e não questiona o funcionamento do sistema que está por trás.
Ezio Manzini, um dos mais notáveis pensadores do design para sustentabilidade, traz a visão do designer enquanto orquestrador dos processos multidisciplinares de mudança, estes orientados pelo design para inovação social e para sustentabilidade. Uma profissão que pensa novas abordagens projetuais, novos modelos e metodologias que irão sustentar e direcionar projetos dentro de contextos complexos. Contribuindo para o desenvolvimento de capacidades das organizações através das pessoas, que, por consequência, colabora para a mudanças dos sistemas - sejam eles privados ou públicos.
Nos projetos que atuamos na Nômade, estamos olhando constantemente para a construção de processos colaborativos, que contribuam para um sistema democrático. Pensando em como internalizar uma estrutura organizacional que olha para a distribuição de responsabilidades e possibilita uma maior autonomia das pessoas, estamos implementando um modelo de estrutura de feedback, conectado diretamente à construção da nossa estrutura organizacional.
Esse modelo possibilita que as pessoas da Nômade possam contribuir, através de um processo constante de revisão, para a construção de um sistema com maior autonomia. O modelo foca no entendimento de conhecimentos, habilidades e responsabilidades particulares, para que possamos contribuir para o crescimento individual e coletivo ouvindo uns aos outros. Assim, nos potencializarmos enquanto grupo e, de fato, ressignificarmos de forma verdadeira a relação dos negócios com a sociedade, provocando transformações profundas nos ambientes onde atuamos.
Desenho do metamodelo de estrutura de feedback da Nômade.
Acreditamos que, para termos a capacidade de criar sistemas mais democráticos, é preciso ouvir as demandas de mudanças e as aspirações da nova geração. Assim, abrindo espaços reais de construção coletiva, tanto nas organizações que se propõem a trabalhar com design, como em tantas outras. De forma à caminharmos em direção ao desenvolvimento de sistemas distribuídos e resilientes, que não centralizam poderes e possibilitam a construção de autonomia, potencializando a atuação do design e desempenhando sua capacidade de transformação da sociedade.
Esse texto foi escrito pela Aline Cereja e enviado para quem assina o Gulliver, a newsletter da Nômade.
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Quer se aprofundar sobre o assunto?
Seguem algumas referências que foram consultadas para este artigo.
Design quando todos fazem design. Uma introdução ao design para Inovação Social. Ezio Manzini. Primeira Edição.
Metaprojeto: o design do design. Dijon De Moraes. Primeira Edição.
Podcast Mamilos: #144 - Futuros Possíveis: Saída: Direita ou Esquerda?